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Paredes e Borboletas

A Comunicação é uma aventura. Transformar ideias, sentimentos e percepções em algo que ultrapasse os limites da linguagem e alcance o coração e a mente dos outros de um modo parecido com o que planejamos é um desafio que contagia, e porque não dizer, vicia quem se aventura e tenta fazê-lo.

Falar disso nos faz lembrar de um amigo que se tornou um corredor. Logo que começou a treinar para corridas ele nos explicou o motivo de sua dedicação: em determinado momento da corrida o organismo libera endorfina, uma substância que relaxa e dá prazer. Ele começou a correr e não quis mais parar.

Nós líderes e educadores somos parecidos com os corredores: influenciar e ensinar nos exige dedicação e disciplina mas libera em nós um sentimento de satisfação e realização sem igual! Conseguir se comunicar de um modo claro e compreensível é uma experiência única.

Akila e Eu aceitamos o desafio de repartir com vocês algo que tem marcado nossa experiência de vida cristã - tornar a igreja uma comunidade cristã inclusiva para as crianças.

Eu (Evandro) frequento igrejas presbiterianas independentes desde os meus 04 anos e AKILA desde os 10 anos, após sua conversão numa EBF (Escola Bíblica de Férias).

Nos próximos parágrafos esperamos incomodar, despertar, animar, mas, sobretudo reaproximar nossa prática comunitária daquilo que entendemos ser a vontade de Deus para as nossas igrejas.

Por muitos anos a relação igreja e criança infelizmente ficou reduzida a falar sobre a Escola Dominical e/ou eventos para as crianças. Nos últimos anos Deus tem raspado o fundo da panela e trouxe a tona um aspecto importante da relação da criança com a Igreja: o culto público. Um exemplo claro deste movimento divino foi a mudança quanto a Ceia para membros não professos.

Falar de crianças é falar de crescimento, por isso que a maioria dos textos sobre a espiritualidade das crianças menciona Lucas 2:52!

Todos sabemos que o ser humano do nascimento até a morte está em constante desenvolvimento e que este se dá em etapas ou fases. Mas será que nossa prática comunitária e litúrgica refletem uma consciência também do desenvolvimento integral de nossas crianças?

Relembro (Evandro) aqui uma de minhas professoras no Seminário Teológico de Londrina, Odete Líber de Almeida, em seu trabalho sobre a inclusão da criança em nossas liturgias:

"O ser humano desenvolve-se enquanto pertence a um grupo social, a um contexto de relações que desenha o mundo e ensina os primeiros conceitos da vida e, juntamente com o desenvolvimento de uma criança, a fé está também incluída na história do desenvolvimento humano. A igreja, enquanto comunidade de fé, tem o desafio de reformular sua prática cultual como espaço de crescimento espiritual no sentido de gerar na vida das crianças um polo de encontro de solidariedade e maturidade. [...] Na comunidade de fé deve existir um espaço aberto as desventuras e as oportunidades de novas maneiras de crescimento da criança, já́ que elas possuem características próprias dentro do seu desenvolvimento cognitivo e psicossocial."1

Recortando um pouco mais este assunto queremos focar naquilo que os estudiosos chamam de Primeira Infância, que vai mais ou menos de 0 a 6 anos.

As crianças nesta fase:

- aprende através de experiências sensoriais: vendo, apalpando, ouvindo, movimentando-se. Fala com o corpo todo e ouve com o corpo todo;

- é egocêntrica, mas não necessariamente egoísta. Isso quer dizer que ela pensa que tudo existe por causa dela, para ela, por ela;

- Exercita a capacidade de fantasiar. Ela ainda não faz diferenciação entre o mundo real e o imaginário;

- É imitadora dos gestos de irmãos, colegas, adultos que a cercam, principalmente dos pais;

- É afetiva e tem grande necessidade de carinho o que influenciará o desenvolvimento de sua segurança e estabilidade emocional;

- É lúdica - Brincar é uma necessidade, uma forma de expressão, de aprendizado e de experiência. Brincando é que a criança organiza o mundo, domina papéis e situações e se prepara para o futuro;

- Vive o presente - A construção da noção de tempo, se faz pela experiência e ação da criança que, em seus primeiros anos de vida vive o presente de forma intensa;

Segundo Blanches de Paula "nossa fé ‘adulta’ está diretamente vinculada com a vivência e convivência no mundo infantil. A fé é cultivada nas relações que travamos desde que nascemos”2.

Olhando para nossos cultos e a inclusão de nossas crianças revelamos nosso esquecimento ou ignorância do fato que é relacionando-se com os outros que o ser humano se encontra e se define como pessoa, e entre outros aspectos desenvolve sua espiritualidade.

Aqui vai um alerta: muitas de nossas comunidades ensinam e desenvolvem a religiosidade de nossas crianças, mas não necessariamente uma espiritualidade saudável.

O conhecimento de Deus e a experiência da fé é, antes, um "encontro", uma "jornada", com os pais e as outras gerações que formam a comunidade de fé. Você já se perguntou como e quando uma criança constrói as imagens e os conceitos, como, por exemplo, de Deus e Igreja?

Erik Erikson3 foi um estudioso na área de psicologia do desenvolvimento humano. Ele considerou a cultura e o aspecto social como indispensáveis para desenvolvimento da pessoa. Nesse aspecto em que "cultura" estamos inserindo nossas crianças?

O pastor e psicólogo James Fowler 4 é um estudioso da fé e sua relação com o desenvolvimento humano. Seus estudos resultaram na teoria dos estágios da fé. Como exemplo Fowler acredita que as pré-imagens de Deus são inseridas na criança ainda bebê, num primeiro estágio que ele chama de "fé indiferenciada" quando a criança não diferencia a si mesma dos outros. Refletindo apenas neste estágio, basicamente o primeiro ano de vida de uma criança, como nossos cultos e suas estruturas contribuem para o desenvolvimento espiritual de nossas crianças?

Para ajudar nesta reflexão convidamos você a passear conosco por duas histórias.

A primeira é sobre uma igreja que há uns quinze anos atrás decidiu construir um prédio com salas para educação cristã. Ela havia guardado recursos por um longo tempo por isso as primeiras etapas da obra foram concluídas rapidamente. Na fase final de acabamento e compra dos móveis a obra teve um ritmo mais lento, mas em dois anos o prédio estava em uso. Ao longo dos anos muitos professores e alunos já passaram por ali. Excelentes aulas foram ministradas. Alunos satisfeitos recordam o que aprenderam naquelas salas. Mas a história não termina aqui. Recentemente a igreja ganhou uma nova professora. Esta jovem senhora desde sua conversão sentia o coração bater mais forte quando o assunto era ensinar. Aguardou ansiosa sua hora chegar. E ao final do seu primeiro semestre de aulas enviou um documento ao conselho da igreja com um pedido de reforma da parte elétrica da sala onde ministrava. Justificativa: como usava seu notebook e usava também o data show (que foi trocado por uma mais novo e ficava no templo) ela precisava de um ponto de energia mais próximo do lugar onde ele ficava, pois a única tomada que existia fica perto da porta, do outro lado da sala. Durante o semestre ela levava uma extensão de casa que nas primeiras semanas foi desligada por alguns tropeços dos alunos, mas que ganhou a segurança de uma fita crepe trocada constantemente até o momento. As opções eram duas: quebrar a parede e refazer as instalações de tomada da sala ou então instalar canaletas ao longo da parede até o ponto necessário. Qual opção você acha que o conselho escolheu?

Ao olharmos para os nossos cultos e a inclusão de nossas crianças hoje nos deparamos com necessidades que não foram reconhecidas e previstas. Não adianta olharmos para nossos antecessores que construíram este prédio e culpá-los. Será que hoje temos a consciência que as coisas que acontecem nos primeiros anos de vida marcam uma criança pelo resto de sua vida e que estes primeiros momentos e experiências estabelecem as bases para o seu percurso afetivo, cognitivo e também espiritual?

Depois de conscientes o que vamos fazer: ter a coragem de enfrentar os desgastes, sujeira e transtornos de "quebrar paredes" e dar respostas eficazes e permanentes ou vamos optar por canaletas ou ainda manter extensões grudadas com fitas no chão?

Permitam-nos uma segunda história.

Certo menino enquanto brincava no quintal encontrou um casulo de lagarta. Levou para casa e motivado pelo pai, professor de biologia, deixou o casulo no seu quarto num lugar apropriado para seu desenvolvimento. Ele observava o casulo todos os dias, ou melhor, várias vezes ao dia. Certo dia ele observou que aquilo que estava dentro do casulo começou a se mexer e muito. Logo ele correu, apanhou um estilete na sua gaveta e fez um pequeno corte no casulo. Depois de alguns instantes o casulo se rasgaria e dele sairia uma linda e colorida borboleta. Que visão maravilhosa! Que experiência única observar a beleza e os primeiros passos daquela borboleta. Passada a euforia veio a preocupação: por que aquela borboleta de asas tão coloridas não voava? Mais tarde quando o pai chegou veio a explicação - ao ajudar a borboleta a romper o casulo o menino impediu o fortalecimento necessários para as asas conseguirem voar.

Todos sabemos que "atalhos" cobram mais tarde seu preço. Esta história sempre me remete as imagens do caminho estreito e largo usados por Jesus.

Ao longo de vinte anos trabalhando com jovens e adolescentes (Evandro) tenho encontrado muitas borboletas que não voam em nossas igrejas.

Hoje muitas de nossas igrejas ao adotar propostas como o de cultos exclusivos para crianças estão com estiletes nas mãos rompendo os casulos da espiritualidade delas. Não estamos propondo culto especiais para crianças com preletores convidados, decoração infantil do templo e guloseimas no final. Não estamos propondo chamar as crianças a frente para um momento especial com elas dentro da liturgia.

Estamos falando de quebrar as paredes de nossas liturgias e torná-las inclusivas e naturais para nossas crianças. Elas não precisam de destaque, elas precisam de uma comunidade.

E lembramos que aqui fizemos um recorte: mudanças em nossas propostas litúrgicas deverão vir acompanhadas por reflexões e mudanças em outras áreas como a Escola Dominical e os grupos pequenos.

Sobre Escola Dominical e o ensino das crianças perguntamos a você o que sempre perguntamos aos pais: é responsabilidade da igreja contar histórias bíblicas para seus filhos? Você compra e deixa seu filho assistir dezenas de vezes aquele DVD de animação e nós que temos que contar histórias bíblicas para seus filhos? Você é quem compra vários títulos de literatura infantil e coloca seu filho para dormir todas as noites e nós que temos de contar histórias bíblicas para ele? O que a igreja tem por responsabilidade e somente ela pode proporcionar é a experiência da vida em comunidade.

A missionária Daphne Kirk reforça em seu livro "Reconectando as Gerações" que poucas vezes a Bíblia fala de crianças de modo exclusivo e específico, porém toda a Bíblia fala também sobre as crianças quando refere-se a "povo", "todos", "cada um", "toda a nação", "comunidade" e "família". Ela afirma "nós não percebemos isso porque fizemos a palavra "todos" significar "adultos"5.

Hoje necessitamos de arrependimento e não apenas de estratégias.

Hoje necessitamos de um autoexame sobre o que é ser igreja.

Parte da responsabilidade do processo que hoje faz nossos jovens e adolescentes deixarem nossas comunidades é dos líderes e adultos, pois quando eles já foram excluídos da comunidade quando eram crianças. Ou você acha que a experiência de uma sala de escola dominical, o relacionamento com as muitas "tias" e a participação em muitos "retiros", "EBFs" e tardes especiais darão a elas o senso de pertença e uma visão comunitária da igreja?

Veja bem, não somos contra a Escola Dominical e os Eventos Especiais para as crianças, o que acontece é que não podemos esperar deles o que eles não podem dar aos nossos filhos!

Aproveitamos o gancho para alertar aos que estão optando por grupos pequenos específicos para crianças, que escalam adolescentes ou literalmente contratam pessoas para "cuidar" de seus filhos durante os encontros do grupo pequeno, que além de estar em pecado por conta da omissão de suas responsabilidades como pais, estão também roubando destes pequenos a única e insubstituível oportunidade de construir os fundamentos de uma espiritualidade saudável e uma visão comunitária da igreja.

Talvez você possa achar que estamos exagerando da mesma forma que um pai manda seu filho levantar para dar lugar para um adulto e depois lhe instrui categoricamente sobre o respeito aos mais velhos não consegue entender o impacto que ele teria sobre seu filho se aquele filho o visse se levantar e ele dar o seu lugar!

O que vale pregarmos em nossos púlpitos contra o consumismo religioso se estamos forjando estes mesmos valores contra quais pregamos na espiritualidade de nossas crianças?

Percebeu por que escrever e refletir vicia?

Isto porque não vamos refletir sobre o fato que sobretudo o dissemos até aqui diz respeito a no máximo 150 horas do tempo de nossas crianças durante um ano contra cerca de três mil horas com seus pais. Mas isto é tema para outra conversa.

Vamos quebrar as paredes?

Vamos enfrentar a tentação dos estiletes?

 

Evandro Luís e Akila Viviane Relke Kneube Moreira

1 http://www3.est.edu.br/biblioteca/btd/Textos/Mest_Prof/almeida_ol_tmp10.pdf - página 20

 2 http://www.metodista.br/centraldeestagios/ppc/caminhando/caminhando-14/caminhando-14/a-crianca-e-a-fe/

 3 “Psicodinâmica e Sacrodinâmica”, artigo eletrônico de Uriel Heckert - http://www.cppc.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=266&Itemid=114

 4 http://www.metodista.br/centraldeestagios/ppc/caminhando/caminhando-14/caminhando-14/a-crianca-e-a-fe/

 5 Kirk, Daphne. Reconectando as gerações. Ministério Igreja em Células, Curitiba, 2003, página 97.